A PORTA PARA A RUA PARECE A ENTRADA DA MINHA CASA

quinta-feira, setembro 07, 2017


Na primeira estranheza, meus olhos faziam dança pelos milímetros do gabinete. Arregalados, incrédulos, indignados. Ardiam. As minhas íris fitavam os objetos estrambólicos e emitiam para os meus pés o recado da necessidade de ir. Os cheiros fortes atacavam a minha rinite, aprazeravam a minha asma e tapavam a minha garganta. Inspirei.

Havia uma cadeira servindo como apoio para ficar de pé, uma lixeira onde você deixava os pratos limpos, livros que obtinham a função dos guardanapos e estantes altas nas quais ficavam os animais de estimação. E eu, que sempre fui fascinada por novas utilidades, por utilizar tênis como um novo formato de porta-lápis, por caçar a metáfora do fogo por detrás de uma geladeira, vi-me ali, com as matas ciliares das minhas visões em tamanho afastamento, a ponto de sentir correr o rio pelo meu queixo.

Naquele primeiro assombro, cambaleei até a porta segurando os meus pulmões afanados. A sua janela, que não servia, jamais, para ser aberta, foi dando adeus à última greta de luz que regava o local. Parei na frente da maçaneta, estupefada, impaciente, desesperada, agonizada, mas não ainda embaralhada. Desmaiei.

Acordei em meio a lençóis macios, com abajures ligados, vias respiratórias menos afetadas e um banquete ao lado. Suas mãos acariciavam a minha bochecha, em um início de passeio pela minha pele, que findara em um tímido cafuné. Seus dedos formulavam um ciclo de bem-estar. Ar. Estávamos no cômodo ao lado daquele gabinete, e esse era o incômodo que ainda deixava vestígios nas minhas cordas vocais. Mas ali, naquele outro aposento, eu respirava.

Com o tempo, pelo pouco sopro e fôlego adquirido após desmaios, meu nariz já não reclamava da poeira do gabinete, estava calejado. Minha revolta pelos livros arruinados parecia esquecer de futucar as minhas entranhas. Meus olhos já não arregalavam por verem uma janela feita para trancafiar. E, aos poucos, de tão acostumada com o que não era poesia e, sim, cálculo de subtração, fui deixando que você levasse o gabinete para dentro da minha sala. Você foi montando um igualzinho ali, pelos cantos das poltronas, no vazio de alguns jarros e em rodapés caídos. Eu ainda ofegava, por vezes meus olhos lagrimejavam e a tosse fazia ecos nos corredores. Mas não era como antes. Não como nas primeiras vezes. Eu já conseguia olhar e não cair dura no chão.

Mas aí você veio com aquela estante enorme, para colocar os animais onde não seriam seres vivos, onde não teriam contato conosco, onde não poderiam sentir. Isso eu não pude permitir. Gritei. Pisei os pés firmemente. E esqueci de reparar que, se meus olhos, boca e órgãos reclamavam da reforma anterior, a mesma atitude de rebelião deveria ter ocorrido quando ela foi iniciada. Afinal, o lixo para os pratos limpos misturava com louvor as frutas podres e o brilhantismo dos esforços de uma mão na pia. Comer naqueles pratos estava alegrando a minha gatriste e chamando uma bela de uma intoxicação alimentar.

Você, então, colocou as estantes de uma forma diferente. Os animais foram para o chão, o que fez uma ponta de esperança subir pela minha nuca. Mas, lá no alto, ainda estavam os passarinhos. Eles ficavam ali, na grande lastra de madeira, com as patinhas acorrentadas. Meu peito ficava mais roxo a cada olhada para aquelas representações de cela. Você tirava as correntes uma vez por dia, e eu aumentava a quantidade ao tapear seus olhos para retirar também.

Com dores no tórax, na garganta, no estômago e nas pupilas, passei a cambalear pela casa inteira. Já não adiantava ir para outros cômodos para puxar brisas vindas das gretas das minhas janelas. Os banquetes, naqueles pratos tóxicos, já não alegravam a minha psique. Mas quando as suas palmas tocavam o meu corpo, era como um medicamento de efeito instantâneo, que durava mesmo depois que elas se afastavam. Não percebia que aquilo, diante de tantas dores em retorno, era apenas paliativo.

Durante a reforma, enquanto uníamos ambas as casas, a minha e a sua, você admirava os quadros com frases e ilustrações que eu grudava nas paredes e pisos. Até o tênis que eu fazia servir de estojo e a bolsa que utilizei para fazer morada de uma planta, ganhavam os seus elogios. De toque seu em retoque meu, conseguia andar com o corpo ereto pelos quartos.

Após alguns meses, me acostumei com os passarinhos presos, com os pratos morando em lixeiras e com a poeira causada pelas janelas fechadas, pela falta de circulação de ar. Fui parando de colocar os meus quadros, os meus tênis, e de criar novas utilidades para o que estava à nossa volta. Tudo foi ficando mais literal, menos sensível, menos poema e mais hábito.

Então, com os olhos hipnotizados, sem achar a mim, fui ao lado da cama em que você dormia e preguei, logo acima, uma estante como a que colocou no meu canto favorito da sala. Nela, acorrentei o único animal que você nunca havia posto em estantes.

Você chegou no quarto, encarou a nova parte da reforma, e espirrou como eu havia espirrado durante tanto tempo. Seus olhos ardiam, você não respirava. Vi as lágrimas se instalando na lateral do seu nariz. Você não aceitava o que você mesmo me propôs a ser.

Os anteriores novos sentidos que eu dava nos cantos, por mais que nem sempre fossem do seu total agrado, não matavam o que era fundamental para você. Não prendiam a calopsita que você amava, não causavam dor ao seu sistema respiratório.

E foi ali, naquele segundo, que me olhei no espelho esquecido que morava ao lado da cama. Meu rosto pálido, meu tronco de cor lilás, meu nariz vermelho e a minha boca ressecada. Esses eram os pontos de atenção, porque meus olhos já não eram mais meus por muito tempo, até antes daquele momento. Percebi que há meses não bebia água. Somente suco, refrigerantes e alguns líquidos que não sei nomear. Eu colocava água no seu copo, no entanto.

Corri então para a cozinha. Sem forças nas pernas, fui cambaleando, como sempre estive, ainda que não percebesse. Procurei pela água, precisava dela. Estava recobrando a consciência. Não encontrei uma gota sequer.

E é por isto que preciso sair daqui. Escrevo com as mãos trêmulas e morrendo de sede, precisando de ar limpo. Aqui, me acostumei a achar normal o que acho absurdo. Aqui, virei sinônimo do comodismo que pensa que depois de uns ajustes, o que mata quem sou aos poucos, pode vir a melhorar. Aqui, aceitei o ruim como se fosse uma cultura desrespeitosa. Logo eu, que sempre defendo que nenhum costume, ainda que social, merece viver caso cause falta de direitos equivalentes para todos os lados.

Aqui, deixei de prezar pelo que prezo. Aqui, fui deixando a minha essência embaixo do tapete. E sentimento só serve para ficar, se durante a reforma, o que torna você como alguém bom, permanece. Se durante a reforma, o outro coloca estantes que também gostaria que você pusesse. Se durante a chegada, não existe algo que cause labirintite, asma, quebra do que considera água.

Aqui, a maldade do mundo me pareceu normal. E, logo eu, que sempre acreditei nas raridades e defendi que maturidade é não desistir de sentir, passei a olhar para você como se não fosse encontrar nada melhor. Aqui, esqueci que, apesar de não existir ninguém que se encaixe idealmente nos nossos desejos, existem milhares de nomes vivos que nos dariam de volta, prioritariamente, somente aquilo que anseiam por receber, ainda que tenham lá seus pontos de ajustes.

Não me leve a mal, não se trata de não aceitar a existência das diferenças. É sobre não conceder ao implausível; sobre não cortar pilastras. Não se trata de não tentar abrir olhos como os seus, de não insistir mais um pouco para sair sem incertezas dolorosas. É sobre fechar os meus próprios olhos e deixar de olhar para o que mais admiro em mim. É neste momento, quando passamos a achar trivial aquilo que consideramos incorreto, que está na hora de ir. Está na hora de lembrar que o sentimento saudável pega o que temos de melhor, pega o que temos de criança acreditando em bondades, e amplifica, na maior parte do tempo: no que mais pesa ao colocar a relação na balança.

Soltei os passarinhos das estantes, e você franziu a testa. Joguei a lixeira em uma lixeira e, os pratos limpos, coloquei na pia. Você retorceu o corpo. Abri as janelas, e você reclamou. Resmungou de cada um desses atos, porque eles fazem parte dos meus alicerces, e não dos seus.

Preciso ir para relembrar dos meus azulejos, para descobrir novas tintas sem ter que arrancar as paredes que seguram a minha fundação. Preciso ir para fazer reformas que não quebrem os meus pisos, ainda que novos cimentos sejam propostos. Preciso ir para ficar no honrado, na linha equânime; não em gaiola, mas em ninho. Preciso ir para reencontrar meu teto, em outro canto, canto no qual caiba os meus tijolos, porque neste, não tinha casa minha, tinha uma pensão, quartinho de hotel, sem espaço para a fundo sonhar. E onde a nossa cabeça não afunda nos travesseiros, é onde não estamos conseguindo sequer cama.

Preciso ir para o que seja lar; preciso ir para a minha porta, para nunca mais permitir que outra a abrace se não for para, lá dentro, ter o que faz daquele espaço, minha cara  mesmo que com outro nariz e outra altura. As cores precisam se mesclar, ainda que formem novos tons. E aceito quebrar para ser maior. Aceito martelos, furadeiras, novos pregos e reparação. Mas só é justo fazer as rupturas enquanto não elaboram rachaduras. Só é sadia a soma quando as bases não quebram, quando ainda existe rio filtrado para beber, quando ainda encontra espelho.

Seu gabinete jamais serviria para caber na minha sala, porque ele tira a minha fé nas minhas crenças. Ouvi dizer, até, que tem gente que entra nele e diz que não tem nenhum animal nas estantes, nenhuma lixeira com pratos limpos, nenhuma janela fechada, nenhum livro servindo como guardanapo. Talvez, essas sejam as pessoas certas para ficarem de pé na sua cadeira que só serve para calcanhares. Para mim, aqui onde nos juntamos, aí onde chegamos, só sinto agora a minha falta de mim.

Estou batendo a porta e deixando alguns recados na geladeira, alguns tênis para você colocar nos pés e, algumas mochilas para que, quiçá, utilize para plantios. Vou levar aquele jarro belíssimo que deixou no canto da varanda. Afinal, sempre existem desses em todas as casas destroçadas. Mas eles só são esperança e motivo para ficar, quando o mau ainda é ruim, quando migalhas não são aplaudidas, quando quem dá o que não quer receber, ainda é desmerecedor. Quando o que é básico, não vira sinônimo de muito; quando o que seria morada, não vira sinônimo de estranheza. Quando o adeus não vira sinônimo de poder voltar – para casa.

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16 COMENTÁRIOS

  1. Que saudade que eu tava dos seus escritos, Brunt. São tantas frases que anoto, tanta coisa que repenso. Sempre você nos dá os melhores tapas com reflexões e metáforas críticas geniais!! Minha poetisa favorita!

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  2. Menina que reflexão maravilhosa!!!! Fiquei pensando na vida, nos acontecimentos e no que deixamos de lado e ao que damos mais ou menos importância. No que realmente faz diferença e no que estamos fazendo hoje.
    Amei o texto.
    Beijocas.

    www.meumundosecreto.com.br

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  3. Nossa que texto maravilhoso!
    Super profundo, suas palavras tocam a alma!
    bjs
    Patty Lye
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  4. Olá, Vanessa.
    Texto maravilhoso. Infelizmente isso acontece muito, nos acostumamos fácil com coisas que a principio achamos erradas. É nessa hora que temos que rever o que realmente importa.

    Prefácio

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  5. Seus textos são tão maravilhosos e sempre abordam assuntos tão reflexivos! Obrigada por compartilhar uma escrita tão impecável! ❤

    www.kailagarcia.com

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  6. É incrível a forma poética e reflexiva com que você aborda todos os sentimentos. Sempre termino seus textos e poemas com tantas lições em mente. Que você ganhe o mundo com esse talento!

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  7. que texto maravilhoso, emocionante e super bem escrito!

    www.tofucolorido.com.br
    www.facebook.com/blogtofucolorido

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  8. Que textão incrível! Cheio de metáforas, reflexões e sentimentos de forma poética. Eu adorei demais! Me fez refletir bastante, e concordar com cada frase dita. Algumas vezes tentamos nos encaixar, ou deixar que algo se encaixe em nós, e fazemos de tudo para dar certo. Mas nem sempre isso ocorre, e é preciso ter maturidade e segurança para se desprender disso.

    Com amor,
    Steph • Não é Berlim

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  9. Quanta poesia! Metáforas maravilhosas e muita reflexão fundamental pra vida. A dor e a agonia só merecem lugar quando não estão no topo da lista. Obrigada por sempre trazer escritos tão intensos e importantes, Brunt

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  10. Vanessa, você é mesmo uma poetisa. Lindo texto, cheio de metáforas e imagens impactantes. Você arrasa!

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  11. Você tem muito talento para escrever <3
    Gostei muito e me fez parar para refletir!

    Parabéns

    beijos

    Blog Lua Soares

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  12. Nossa, fazia umas semanas que não lia um texto tão bom assim

    Beijos,
    www.thalitamaia.com

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  13. Isso é poesia! Metáforas intensas, maravilhosas e com muitas lições importantes. Tenho orgulho de ler alguém de tanta profundidade, entrega e reflexão.

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  14. Olá
    você escreve muito bem
    consegui entender as sinopses, suas opiniões.
    adoro cinema também
    beijão
    Karina Pinheiro

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